Homilia - 02/09/2018 - XXII Domingo do Tempo Comum
Vivemos num mundo de muitos mestres, de muitas opiniões, de muita gente entendida de tudo e que fala sobre tudo... Há tantos caminhos, tantas propostas, tanta gente com ares de sábio e entendido... Nesta época da campanha eleitoral, cada candidato apresenta uma proposta para conseguir tirar o povo brasileiro do fundo do poço em que o Brasil se encontra. Lamentavelmente, vivemos num mundo cheio de mentira e falsidade conforme o ditado, já nos acostumamos a comprar e a vender “gato por lebre”. A televisão estampa, diariamente, a ilusão e a hipocrisia nas atitudes e palavras daqueles que deveriam ser modelo de vida.
A própria Igreja está atravessando um período de gravíssima crise por causa dos abusos sexuais praticados por parte de membros da Igreja. O papa Francisco não evitou falar sobre o escândalo que ainda pesa sobre os ombros da Igreja irlandesa em seu primeiro discurso de sua recente viagem à Irlanda, diante do primeiro-ministro da Irlanda, dos membros do governo e do corpo diplomático.
A primeira leitura nos fala dos mandamentos como condição de viver bem e entrar na posse da terra que Deus quer dar a seu povo. Moisés falou ao povo, dizendo: “Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida pelo Senhor Deus de vossos pais” (Dt 4,1).
É possível que, ao ouvir esse texto, seja mais fácil pensar que viver bem e possuir a terra seja uma espécie de prêmio que Deus dá a quem é obediente. Mas para que Deus precisaria da nossa obediência? Seria Deus parecido com certos políticos que distribuem favores para seus cabos eleitorais, seus seguidores?
O texto da primeira leitura aponta noutra direção. Recomenda seguir as leis de Deus, porque o resultado é um funcionamento melhor da vida. É nisso que Deus está interessado. Ele quer a criação dando certo. A felicidade de todos é o maior prêmio. Jesus disse que os mansos possuirão a terra... e vemos os violentos fazendo guerra para ter domínio de mais terra, mais lucro, mais poder.
Qualquer leitura rápida de jornais nos fará perceber quanta coisa começa a dar errado simplesmente porque as pessoas não praticam as leis de Deus. Não é só o assaltante que está violando um mandamento. Por trás da violência do nosso dia-a-dia está uma história de valores que não são os de Deus. Tudo seria diferente se, de fato, a sociedade se organizasse para defender os filhos e filhas de Deus, em todas as etapas da vida, em todos os seus direitos e necessidades. Perdoar é mais tranquilizante do que guardar rancor; socorrer os desamparados é mais fácil e mais barato do que encher prisões; educar crianças e jovens com limites, ideal e sentido da vida é mais produtivo do que deixá-los sem ter outro remédio para a frustração que não seja a droga; amar de verdade é mais emocionante do que usar o outro como objeto de diversão e prazer. Não há ninguém como o fabricante para saber como um produto funciona melhor. Deus nos fez e nos conhece melhor do que nós nos conhecemos a nós mesmos. Como Criador, ele não gosta de ver sua obra estragada. É muito sábio seguir as instruções do fabricante de gente.
“Guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo. Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: ‘Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação’” (Dt 4,6).
O trecho da Carta de Tiago, que lemos hoje, recomenda que os cristãos se afastem da corrupção do mundo. “Não se deixar contaminar pela corrupção do mundo (Tg 18,27). Não é afastar-se do mundo, porque é no mundo que temos que ser fraternos, caridosos, solidários, defensores da justiça. Deus, que criou o mundo, quer salvar a sua obra, quer ver o mundo funcionar direito. Mas há no mundo uma corrupção da qual não podemos fazer parte, porque corrupção é apodrecimento, estrago da obra de Deus. Dizer “todo mundo faz assim” para ignorar a injustiça ou violar direitos, não é desculpa aceitável. Estamos no mundo, sim, mas é para fazer diferença, na direção dos planos de Deus.
Tiago resume muito bem o seu recado, dizendo: “Sede praticantes da Palavra e não apenas ouvintes (Tg 18,22). É claro que temos que ouvir a Palavra de Deus e criar sempre mais intimidade com ela. Mas seria triste transformar o conhecimento da Palavra do Senhor em cultura inútil ou exibicionismo.
Estamos no início do Mês da Bíblia e Tiago alerta que não sejamos apenas ouvintes mas praticantes da Palavra de Deus. A escuta da Palavra pede uma compreensão que faz crescer na caridade e transformar a realidade. É possível entender muito de Sagrada Escritura e teologia e estar bem longe de agradar a Deus. No livrinho “Crescer na leitura da Bíblia” da CNBB se diz: “Se a leitura da Bíblia não torna a pessoa mais humana, mais fraterna, mais capaz de construir um mundo melhor, há algo errado com seu modo de ler”. Poderíamos acrescentar: leitura bíblica que serve só para alguém se exibir como entendido no assunto é desperdício do chamado da graça.
O Evangelho lido hoje confirma o sentido das duas primeiras leitura. Os discípulos de Jesus são censurados por não cumprirem leis de purificação ritual. Não eram leis ruins. De certa forma, até serviam, de proteção para o povo que não tinha as condições de higiene da vida moderna. Talvez por isso mesmo, tais leis aparecem no Antigo Testamento como orientações de Deus para o povo viver melhor. O problema estava em achar que isso era suficiente para estar “em dia” com Deus. Jesus recorre então ao próprio Antigo Testamento, lembrando o que disse o profeta Isaias: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos” (Mc 7,6-8).
A quem estava preocupado com as eventuais impurezas que poderiam entrar pela boca de quem não pratica o ritual de lavar mãos, pratos, copos, Jesus alerta para uma impureza maior, para algo que suja a vida de maneira mais prejudicial. O perigo está no que sai da boca e do coração das pessoas: palavras, atos, sentimentos que envenenam as relações humanas. Talvez pudéssemos acrescentar que há perigo também no que não sai de nós: na caridade que não praticamos, na justiça com a qual não nos importamos, no perdão que não cultivamos, na solidariedade que não nos impulsiona. A maioria das pessoas não odeia conscientemente o seu próximo, mas não se dá conta do quanto o prejudica simplesmente por ser indiferente, pessoa acomodada, alheia às dores do seu semelhante. Deus não precisa de nada. Por isso, só há um jeito de servi-lo: cuidar daqueles que precisam e que são amados pelo Pai de todos. Cuidando deles estamos cuidando de nós mesmos, de duas maneiras: tornamo-nos pessoas melhores e melhoramos o mundo onde temos que viver. É ou não é uma escolha inteligente?
Frei Gunther Max Walzer