Homilia - 16/03/2014 - II Domingo da Quaresma
Um sonho é impossível? Neste segundo domingo do tempo quaresmal, gostaria de lembrar um homem que tinha um sonho: O pastor batista norte-americano Martin Luther King. Era negro, em sua época os negros eram publicamente discriminados, humilhados e maltratados pelos brancos. Luther King levantou a bandeira da luta pelo fim da discriminação racial não só em seu país como no mundo inteiro. Como é de costume acontecer com todos os que defendem causas que incomodam os dominantes, ele foi assassinado. Entre tantos testemunhos de fé, de coragem e de esperança no amanhã, deixou-nos este pensamento que é também profecia: “Eu tenho um sonho”.
”Eu acalento o sonho de um dia toda a nação se ponha de pé e viva o significado verdadeiro de sua crença. Sustentamos que essas verdades são evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”.
Aproveitando o Tempo da Quaresma, que é sempre um convite à conversão pessoal e comunitária, a Campanha da Fraternidade retoma a temática da vida em plenitude, tendo como tema: “Fraternidade e Tráfico Humano” e como lema: “É para a liberdade que Cristo nos libertou! (Gl 5,1)”.
No relato da criação, vemos que Deus criou os seres humanos em igual dignidade, para viverem de modo fraterno. Quando um irmão escraviza ou tira a vida de seu irmão está ferindo o plano do criador.
As Sagradas Escrituras testemunham que Deus permanece fiel ao seu projeto de amor. Temos um grande exemplo desta fidelidade na primeira leitura de hoje: Deus chama Abraão e mostra uma visão do futuro do povo de Deus.
Abraão é chamado a uma nova caminhada de esperança. Ele e sua mulher já eram velhos. Não tinham terra e nem filhos. O que mais podiam esperar da vida? Ainda podiam ter sonhos? Deus reacendeu no coração daquele casal a capacidade de acreditar no amanhã, de partir em busca da realização de suas vidas. Fez o convite: “Sai da tua terra e vai para onde eu vou te mostrar”. Abraão e Sara partiram. Sua única garantia era a palavra de Deus.
Sabemos que toda a caminhada do povo da Bíblia é motivada por esta esperança, por este sonho de chegar a uma vida onde não há mais espaço para o sofrimento, o mal, a morte.
O que nos mostra a Campanha da Fraternidade? Homens e mulheres são enganados a deixar sua terra e sua família a respeito das suas atividades futuras e já não são mais livres de decidir sobre sua própria vida. Acabam a viver em situações semelhantes à escravidão ou à servidão, das quais não conseguem mais fugir. Ameaças e violência são com frequência utilizadas para frustrar qualquer tentativa de fuga.
Quantas vezes Deus intervém para libertar os filhos de Abraão da escravidão e conduzi-los à conquista da liberdade e da terra prometida.
No mistério pascal de Jesus Cristo, Deus liberta definitivamente a humanidade da escravidão do pecado e da morte. A páscoa de Jesus é o centro da fé cristã e referência para que os cristãos não se conformem com situações de escravidão como acontece no tráfico humano.
O Evangelho de hoje nos mostra Jesus “num lugar à parte, sobre uma alta montanha”. Levou com ele Pedro, Tiago e João. De repente, Jesus “foi transfigurado diante deles”. Seu rosto ficou lindo, muito lindo! “Brilhou como o sol”! Suas roupas ficaram “brancas como a luz”.
A cena era bonita demais. A sensação que os discípulos sentiam era a de estar no céu, tão grande era a felicidade deles. A transfiguração de Jesus foi uma experiência única na vida de Pedro, Tiago e João porque contemplaram o brilho da luz divina na pessoa de Jesus.
Pedro gostou demais dessa visão e diz espontaneamente: “É bom ficarmos aqui”. Pedro tem uma reação natural: prefere esse Jesus glorificado, por isso quer ficar por ali mesmo. Nós também temos reações parecidas: Muitos gostariam que existisse a Páscoa sem Semana Santa. Por quê? Porque preferimos um Jesus festivo, jovem, simpático, com olhos românticos, e não gostamos muito de ver um Jesus esmagado, aniquilado, com rosto desfigurado e crucificado. É mais tranquilizante ficar rezando na igreja do que enfrentar as lutas do dia-a-dia. "Enfeitamos" Jesus o mais que podemos, cantamos a sua glória e vitória... E temos bastante dificuldade em seguir Jesus pelas ruas e porões da vida, onde a realidade não é tão bonita. É muito duro seguir Jesus na Via Sacra.
Mas Jesus manda os discípulos descer à planície, voltar à realidade. Jesus voltará a andar com eles pelas ruas empoeiradas da Palestina, voltará a enfrentar com eles os problemas da vida e terminará sua vida de uma maneira escandalosa na cruz.
A Campanha da Fraternidade nos quer mostrar este rosto desfigurado de Cristo na Cruz.
Neste contexto, quero lembrar a mensagem do Papa Francisco dirigida aos fiéis brasileiros por ocasião da Campanha da Fraternidade de 2014: “Não é possível ficar impassível, sabendo que existem seres humanos tratados como mercadoria! Penso nas adoções de crianças para remoção de órgãos, nas mulheres enganadas e obrigadas a prostituir-se, nos trabalhadores explorados, sem direitos nem voz, etc. Isso é tráfico humano! A este nível, há necessidade de um profundo exame de consciência: de fato, quantas vezes toleramos que um ser humano seja considerado como um objeto, exposto para vender um produto ou para satisfazer desejos imorais? A pessoa humana não se deveria vender e comprar como uma mercadoria. Quem a usa e explora, mesmo indiretamente, torna-se cúmplice desta prepotência».
Os discípulos de Jesus “ouviram uma voz que dizia: Este é o meu filho amado!” Não foi esse o sonho de Deus quando criou o ser humano, que todos fossem seus filhos por Ele amados? Não foi esse seu projeto amoroso para com toda a humanidade: a fraternidade e a justiça no amor?
Acontece que o ser humano, corrompido pelo pecado, se distancia de Deus e do seu projeto. a sua liberdade não será mais para Deus, mas sim para fazer de sua vida o que lhe convém.
Depois da Transfiguração, Jesus manda os discípulos de volta à realidade. Jesus voltará a andar com eles pelas ruas empoeiradas da Palestina, voltará a enfrentar com eles os problemas da vida.
Em nossa realidade aparecem os tristes relatos de pessoas que matam, escravizam, traficam adultos e crianças e espancam aqueles a quem deveriam ter respeito e amizade, por serem como todos nós filhos e filhas amados por Deus.
Disse-nos o Santo Padre na sua homilia em visita à região de Lampeduza: “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolhas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro: não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa”!
Hoje, aqui reunidos no amor de Cristo, façamos a pergunta: Nós ainda nos sensibilizamos com os sofrimentos dos irmãos e irmãs? Preocupamos-nos com situações de escravidão como a do tráfico humano?
O que podemos fazer?
Se quisermos, novamente, ver o rosto transfigurado de Jesus no rosto das pessoas que sofrem, se quisermos, novamente, ver a veste resplandecente e encantadora da imagem de Deus nas pessoas que vivem na escravidão, temos que “escutar o que Ele nos diz”.
O mesmo Deus que falou lá, naquela nuvem, nos fala, hoje, pela sua Palavra que ouvimos. Ele nos diz no íntimo do nosso coração: “Você também é minha filha e meu filho amado e escolhido”.
Peçamos a Deus a graça de ouvir e atender sempre o que o Filho de Deus, o Escolhido, nos diz. Que o Espírito Santo nos ilumine, para que seja assim!
Frei Gunther Max Walzer, Ofm