Homilia - 30/12/2018 - Solenidade Sagrada Família
Poucos dias atrás, celebramos a festa de Natal e, hoje, celebramos a festa da Sagrada Família. É motivo para refletir um pouco sobre o valor e a riqueza da família.
Parece simples, mas não é fácil falar da Sagrada Família, especialmente quando, hoje, temos muitos tipos de família, nem sempre “certinhas” nos moldes das exigências de nossas convicções pessoais e religiosas.
Por isso, os textos da Palavra da Festa Litúrgica da Sagrada Família podem ser considerados apenas como retórica ou simplesmente poéticos, no sentido que se distanciam da realidade. Alegam alguns, que esta festa litúrgica é incapaz de dizer alguma coisa à sociedade em que vivemos no século XXI. Dizem que a família está em crise. Será que uma crise pode transformar o modelo da Sagrada Família em retórica? Vamos nos deixar questionar pela Palavra que acabamos de ouvir.
Na primeira leitura, o texto do Livro do Eclesiástico fala da honra e do respeito devido aos pais, e fala também do resultado: quem honra os pais achará alegria nos filhos, será ouvido nas orações, terá vida longa...
Hoje, em certos ambientes, tem-se a impressão de que a autoridade de pai e mãe está fora de moda. É claro que já abandonamos aquele modelo fechado de autoridade do passado. Mas será que seria bom passar a outros extremos, em que as crianças e os filhos são criados sem limites e não podem ser contrariados? Todos nós já vimos alguns resultados dessa educação sem exercício da autoridade (poderíamos dizer: dessa falta de educação). E isso nem deixa as crianças mais felizes: criança mimada costuma a ser criança que mais reclama e entra em conflito consigo e com os outros.
Autoridade exercida com sadia maturidade, com gradativa abertura para uma liberdade responsável, é um ato de amor, para que os pequenos não sejam forçados a enfrentar escolhas que ainda não estão preparados para fazer.
O texto bíblico diz que aquele que honra seus pais terá vida longa. Não se trata de uma espécie de “seguro de vida especial” que o céu dá de presente necessariamente, a quem respeita os mais velhos. Mas é fácil constatar numa sociedade na qual todas as crianças fossem acompanhadas da autoridade carinhosa de um adulto digno de respeito (pai, mãe, padrinho, madrinha, tia, avô...) haveria menos violência, menos gente desencaminhada e, consequentemente, mais vida para todos.
O texto do Eclesiástico chama ainda a atenção para o respeito devido aos pais idosos, que já não são “produtivos” do ponto de vista do nosso sistema socioeconômico. Diz que é preciso não lhes dar o desgosto, não permitir que se sintam humilhados quando lhes faltam as forças e até quando já não raciocinam mais com agilidade e clareza. Está aí um modo de entender a pessoa humana: ele tem valor, em qualquer situação, e não pode ser medida pelos mesmos critérios de “utilidade” que servem para objetos de uso comum. Cuidar de idosos, de crianças ou portadores de qualquer tipo de deficiência é afirmar o valor da nossa própria pessoa e quando descartamos pessoas, estamos ensinando ao mundo que nós também somos descartáveis assim que deixamos de preencher certas condições que atendam à conveniência dos que nos cercam.
O texto de Paulo, na Carta aos Colossenses, também fala de relações familiares. Paulo consegue dar conselhos que levam a um equilíbrio: não são só as mulheres que têm deveres, os maridos também têm que amá-las e respeitá-las; não são só os filhos que devem obedecer aos pais, os pais também devem evitar irritar os filhos.
As relações familiares aí poderiam ser resumidas no que está no começo do texto: “Revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, toda vez que tiverdes queixa contra outrem. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai também vós. Mas, acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição” (Col 3,13-15).
Estamos acostumados a pensar em pais que educam os filhos, adultos que orientam crianças. É natural e positivo que seja assim para a proteção dos pequenos e para seu crescimento saudável.
Os filhos não só têm deveres: têm também direitos, devem também ser ouvidos. O que deve existir em todas as famílias é o diálogo, a conversa.
Mas, infelizmente, é isso que está se perdendo, sendo deixado de lado o diálogo. Quantas coisas nos tiram o tempo de conversar em família. Mas não é só aquele diálogo serio, para acerto de contas ou discutir problemas. É também aquele bate-papo simples, falar de coisas corriqueiras, comentar um fato importante, contar como foi uma viagem ou uma festa, contar uma história...
As leituras podem falar de uma outra época, diferente da nossa, mas falam de valores que são válidos em todas as épocas. São valores que continuam importantes para todos os tempos e que hoje precisamos resgatar: o respeito, a dedicação, o carinho, a gratidão, a simplicidade da vida, o cuidado dos doentes e idosos, o perdão, o amor.
No texto do Evangelho, encontramos vários indicativos, detalhes que nos fazem pensar na vida e missão de Jesus. Vejamos:
Jesus menino fica no templo e, como bom judeu, cumpre o que é tradição e obrigação de todas as famílias de seu povo. Jesus diz que precisa cuidar das coisas de seu Pai, cuidar da “casa do Pai” e, Jesus adulto ficará irritado quando transformaram a “casa do Pai” em “covil de ladroes”.Cuidar das coisas do pai, para Jesus, sempre foi cuidar dos filhos e filhas de Deus mais necessitados, cuidar do reino onde os valores que defendem a vida são cultivados.
O Evangelho diz que, depois dessa aventura, Jesus voltou para casa, submissão aos pais, e aí continuou crescendo em estatura, sabedoria e graça. Jesus humano como nós, igual a nós em tudo, menos no pecado, precisou dessa família. Ali aprendeu um oficio e a tradição de seu povo.
Deus quis vir a este mundo nascendo numa família. Deus está presente em nossa família?
Parece que, cada vez mais, se fala menos de Deus, de fé, de Igreja nas famílias. Não será porque cada vez se vive menos Deus na nossa intimidade. Parece que estamos relegando Deus para uma esfera privativa, mas fora de nós, como se cada um tivesse o seu “quartinho” onde entra quando precisa de Deus?
Somos família também e pertencemos a uma família porque, pela fé, somos todos filhos e filhas de Deus, todos temos Deus como Pai. Jesus veio para congregar numa só família todos aqueles que querem acolher o projeto do Pai.
Qual é esse projeto?
É viver e construir uma nova sociedade onde se estabelecem relações de amor, de serviço, de vida. “Gerar a vida” foi, está sendo e sempre será a razão do ser família. E é isso que Jesus nos veio ensinar, sendo um de nós e tendo uma família humana na terra.
Nesta festa de hoje, perguntemo-nos também: para onde vai a minha família, a sua, a nossa família? O que precisamos transformar e o que precisamos resgatar das famílias, para que elas continuem sendo “o ninho da vida”?
E com fé pedimos hoje: “Ó Deus, que nos destes a Sagrada Família como exemplo, concedei-nos imitar em nossos lares as suas virtudes para que, unidos pelos laços do amor, possamos chegar um dia às alegrias da vossa casa”.
Frei Gunther Max Walzer