Homilia - 24/02/2019 - VII Domingo do Tempo Comum
“Eu não levo desaforo para casa”. De vez em quando a gente ouve esta reação dita com raiva. Nós mesmos, em determinados momentos, sentimos o ímpeto e dizemos palavras ásperas, mesmo que seja apenas “da boca para fora”.
O desejo de vingança pode, porém, criar raízes dentro de nós. Pode nos levar a atitudes de “respostas à altura” da ofensa recebida ou do mal sofrido, das perseguições e ódios. Parece que se criou, em nosso país, uma cultura da justificação da violência e do “acerto de contas” no melhor estilo de “fazer justiça com as próprias mãos”. Vemos isso acontecer numa briga de motoristas por causa de um pequeno acidente de trânsito, entre irmãos que disputam a herança, no mundo do tráfico de drogas, onde quem não paga morre.
Por isso a palavra de Jesus hoje pode soar aos nossos ouvidos como utopia, fora da realidade: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27-30).
Jesus quer implantar uma “cultura da paz, da não violência”. Será que ele é um visionário alienado?
As Escrituras nos apontam comportamentos que nos ensinam de proceder nessa direção. Um exemplo disso é o caso de Davi com Saul, na primeira leitura de hoje. Os dois se tornaram inimigos, pois Saul começou a ver em Davi, guerreiro valente, um forte rival e ficou com medo de perder para ele o trono de Israel. Então começou a perseguir Davi e queria matá-lo. Tentou varias vezes, sem sucesso, o que levou Davi a fugir. Saul, porém, saiu ao seu encalce com três mil sodados. Quando estava acampado no deserto de Zif, uma cidade de Judá, aconteceu o episodio que ouvimos na leitura: tendo sido informado pelos seus espiões, Davi se dirigiu, à noite, para o lugar onde o rei acampara e conseguiu chegar até o lugar onde Saul dormia, com sua lança fincada no chão, próxima à sua cabeça.
Neste instante, Davi poderia ter matado o rei. Tinha tudo para fazê-lo, e com razões plausíveis. Mas Davi recusou-se, dizendo: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (1Sm 26,11). Davi teve a chance de livrar-se do inimigo que o queria matar e, matando o rei, poderia assumir seu lugar no trono. Por que não o fez? A atitude de Davi, primeiramente, teve motivo religioso. Os reis, a exemplo dos profetas e dos sacerdotes, eram ungidos por Deus para exercerem a missão de conduzir o povo. O rei é ungido para ser pastor do povo (Sl 78,71); um consagrado com a missão de conduzir e proteger o povo nos caminhos deste mundo. Este foi o principal motivo pelo qual Davi poupou Saul, o primeiro rei de Israel: ele era um consagrado de Deus.
Na segunda leitura, Paulo nos fala do homem terrestre e do homem celeste. À primeira vista poderia parecer que Paulo está separando a experiência humana em dois níveis, dois andares. No andar de baixo ficariam as coisas da terra: bens materiais, preocupações práticas, sexo, relações de trabalho... No andar de cima ficariam as coisas do céu: oração, amores espirituais, sacramentos...
Fato é que temos um mundo concreto para viver, com desafios práticos a cada dia, com necessidades materiais que precisam ser atendidas, numa sociedade que tem bens para administrar e partilhar. Espiritualidade não é viver em outro mundo, é nosso jeito de viver neste mundo os valores do projeto de Deus e demonstrar que somos capazes de viver como filhos e filhas de Deus. Ser “homem celeste” é cuidar de tudo que nos cabe neste mundo com os critérios do Reino de Deus. Se queremos ser do céu, temos que cuidar bem das coisas que Deus criou para nós.
No Evangelho, Jesus nos dá os regulamentos para a vida de uma “humanidade celeste”, bloqueando a fonte da violência. Um princípio fica bem claro: não se vence o mal com as armas do próprio mal.
“Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam. Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra” (Lc 6,27-30).
Para o mundo de hoje parece que Jesus está nos pedindo uma coisa impossível. Vivemos num mundo violento. Tantas diversões das crianças, adolescentes e jovens são violentas nos videogames. Toda hora que ligo a televisão eu vejo sempre alguém matando alguém. De facada, de paulada, de socos ou de balas, será que dá para acatar a ordem do Filho de Deus?
“Amai os vossos inimigos!”
Cristão tem inimigo? Como posso ter inimigos se sou seguidor de Jesus? Sou apenas um cristão de conveniência? Pergunta difícil de responder quando Jesus não nos pede suportar ou conviver com as pessoas, ele nos pede AMAR.
Quantas vezes fomos feridos na face e oferecemos a outra? Que situação difícil de enfrentar! Nossa primeira reação não é oferecer a outra face, mas bater na face do outro, não é verdade?
O que Jesus pede aos seus seguidores é que o amor seja como o amor do Pai: “Sede misericordiosos como o Pai!”. Portanto, deve ser um amor infinito, ilimitado, sem nenhuma reserva, sem restrição. Um amor que vai além dos limites estreitos de uma amizade, de um companheirismo, de um sorriso comercial; um amor que se doe, que se sacrifique e que chegue a amar os próprios adversários, os antipáticos, os que nos prejudicam...
O evangelho não diz que um cristão deve ser passivo, um cristão que não reage a insultos, a difamações e até a maus tratos. Não é isso que o evangelho nos ensina. Devemos viver o amor que nos faz perfeitos como nosso Pai celeste é perfeito. “Tenham misericórdia dos outros, assim como o Pai de vocês tem misericórdia de vocês” (Lc 6,36).
“A mesma medida que vocês usarem para medir os outros Deus usará para medir vocês” (Lc 6,38).
Qual é a nossa medida de amar? Nosso amor pára nos limites sociais? Ou não passa das gentilezas de um comerciante? Estamos construindo uma sociedade de amor? Não limitamos nosso amor às pessoas que nos são simpáticas e aos que combinam com as nossas ideias? “Se vocês amam somente aqueles que os amam, o que é que estão fazendo de mais? Até as pessoas de má fama amam as pessoas que as amam. E, se vocês fazem o bem somente para aqueles que lhes fazem o bem, o que é que estão fazendo de mais?” (Lc 6,32-34).
Não se pode, também, "espiritualizar" o que ouvimos no Evangelho, entendido numa dimensão espiritual apenas. Trata-se de algo muito concreto que nos desafia constantemente e em todos os momentos de nossa existência. Nós vemos, tocamos e sentimos o medo da violência em nossos dias. Hoje, existe muita agressividade e pouco amor. A educação nas famílias, nas escolas precisa deixar de ser competitiva para ser mais fraterna e mais solidária. Nós mesmos precisamos considerar nosso modo de viver para perceber se existem violências que cultivamos dentro de nós, fruto de inveja, competição, raiva... Sejamos misericordiosos como Deus, para que a paz e a serenidade habitem nossas vidas.
Somente amando e perdoando seguimos as pegadas de Jesus!
“Vejam como eles se amam!”
Frei Gunther Max Walzer