Homilia - 08/03/2020 - II Domingo da Quaresma
Quando alguém se despede deste mundo, muitas vezes ouvimos as palavras: “Ele ou ela conseguiu realizar seu sonho”. Conhecida é a frase de Martin Luther King: “Eu tenho um sonho de que um dia toda a nação se transforme num oásis de liberdade e justiça...”. Será que Luther King sonhou com algo impossível? E nós, em que acreditamos? O que esperamos? Pelo que lutamos? Qual é o nosso sonho?
Sabemos que é necessário sempre ter uma meta na vida que nos faz caminhar. Esperamos até o fim do dia para ver se amanha será melhor. Trabalhamos para melhorar nossa condição de vida. No meio de grandes conflitos e sofrimento deste mundo, esperamos por tempos melhores.
O pior que pode acontecer em nossa vida é que tudo, de repente, vire rotina. O que começamos a fazer com entusiasmo pode vir a não suscitar mais nenhuma emoção: nós nos acostumamos. Acostumamo-nos com o que é bom e também com o que é mau. A vida não nos encanta mais. A dor nãos nos toca mais, especialmente, a dos outros.... Perdemos a nossa capacidade de nos indignar e sofrer com a injustiça, com a maldade. Acostumamo-nos a achar que nada no nosso país vai mudar...
Acostumar-se ou desanimar é uma experiência bem humana. Será que também os apóstolos se “acostumaram” com a presença do Filho de Deus? Será que não estavam já desanimando no seguimento de Jesus e vendo as reações hostis dos chefes religiosos e dos fariseus? Vamos ver o que nos revelam os textos da liturgia de hoje.
A primeira leitura de hoje nos mostra Abraão quando chamado a uma nova caminhada de vida. Ele e sua mulher Sara já eram velhos. Não tinham terra nem filhos. O que mais podia esperar da vida? Deus reacendeu no coração daquele casal uma esperança, de partir em busca da realização de suas vidas. Deus fez um convite: “Sai da sua terra e vai para onde vou te mostrar”. Deus deixou uma promessa: “Farei de ti uma grande nação”. Abraão deixa tudo para trás, entregando-se nas mãos de Deus. Inicia-se assim a História da Salvação, que é uma história de fé.
O projeto de Deus é assim: vai acontecendo na história na medida que pessoas e povos vão abraçando o projeto de Deus e fazendo dele seu maior sonho. Isto exige muita coragem para decidir pôr-se em marcha.
O Evangelho de hoje nos mostra Jesus “num lugar à parte, sobre uma alta montanha”. Levou com ele Pedro, Tiago e João. De repente, Jesus “foi transfigurado diante deles”. Seu rosto ficou lindo, muito lindo! “Brilhou como o sol”! Suas roupas ficaram “brancas como a luz”.
A cena era bonita demais. O que os três discípulos veem é fantástico. A sensação que eles sentiam era a de estar no céu, tão grande era a felicidade deles. A transfiguração de Jesus foi uma experiência única na vida de Pedro, Tiago e João porque contemplaram o brilho da luz divina na pessoa de Jesus.
Pedro gostou demais dessa visão e diz espontaneamente: “É bom ficarmos aqui”. Pedro tem uma reação natural: prefere esse Jesus glorificado, por isso quer ficar por ali mesmo. Nós também temos reações parecidas: Muitos gostariam que existisse a Páscoa sem Semana Santa. Por quê? Porque preferimos um Jesus festivo, jovem, simpático, com olhos românticos, e não gostamos muito de ver um Jesus esmagado, aniquilado, com rosto desfigurado e crucificado. É mais tranquilizante ficar rezando na igreja do que enfrentar as lutas do dia-a-dia. "Enfeitamos" Jesus o mais que podemos, cantamos a sua glória e vitória... E temos bastante dificuldade em seguir Jesus pelas ruas e porões da vida, onde a realidade não é tão bonita. É muito duro seguir Jesus na Via Sacra.
Mas Jesus manda os discípulos descer à planície, voltar à realidade. Jesus voltará a andar com eles pelas ruas empoeiradas da Palestina, voltará a enfrentar com eles os problemas da vida e terminará sua vida de uma maneira escandalosa na cruz.
Os discípulos de Jesus “ouviram uma voz que dizia: Este é o meu filho amado!” Não foi esse o sonho de Deus quando criou o ser humano, que todos fossem seus filhos por Ele amados? Não foi esse seu projeto amoroso para com toda a humanidade: a fraternidade e a justiça no amor?
Depois da transfiguração, Jesus manda os discípulos de volta à realidade. Jesus voltará a enfrentar com eles os problemas da vida.
Em nossa realidade aparecem os tristes relatos de pessoas que matam, escravizam, traficam adultos e crianças e espancam aqueles a quem deveriam ter respeito e amizade, por serem como todos nós filhos e filhas amados por Deus. O mesmo Deus que falou lá, naquela nuvem, nos fala, hoje, pela sua Palavra que ouvimos. Ele nos diz no íntimo do nosso coração: “Você também é minha filha e meu filho amado e escolhido”.
Se quisermos, novamente, ver o rosto transfigurado de Jesus no rosto das pessoas que sofrem, se quisermos, novamente, ver a veste resplandecente e encantadora da imagem de Deus nas pessoas que vivem na escravidão, temos que “escutar o que Ele nos diz”.
Esta é a atitude fundamental a ser cultivada ao longo de todo o ano, especialmente, nesta Quaresma: escutar a voz de Jesus Cristo! Este é o caminho para que a “transfiguração” aconteça na vida das pessoas, das famílias e da sociedade, tantas vezes, desfiguradas pelas situações de pecado e de sofrimento que se abatem sobre tantos.
O lema da CF 2020 toma como referência a parábola do bom samaritano contada no Evangelho de Jesus Cristo, segundo Lucas: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lucas 10, 25-37). O sacerdote e o levita, desviam-se do homem ferido, pois não tinham tempo para ele. Mas o samaritano aproxima-se da vítima dos salteadores e, movido pela compaixão, gasta seu tempo e dinheiro, ficando com ele na hospedaria. Paga todas as despesas e promete retribuir ao dono da hospedaria tudo o que gastasse para cuidar do homem ferido.
A postura do samaritano contém o centro do ensinamento de Jesus: o próximo não é apenas alguém com quem possuímos vínculos de parentesco ou amizade, mas todo aquele de quem nos aproximamos. Sentir compaixão é a chave para fazer a vontade de Deus, que ama toda a criação.
Somente contemplando o mundo com os olhos de Jesus, com olhar samaritano, é possível ver o rosto desfigurado de tantas pessoas. Assim vemos o rosto de milhares de crianças órfãs que estão migrando mundo a fora; vemos a violência e os 27 milhões que não estão conseguindo emprego e vemos a violência crescente contra a mulher.
Continuemos a vivenciar a Campanha da Fraternidade, tempo especial de vivência do amor fraterno que nos motiva, a cuidar uns dos outros.
Frei Gunther Max Walzer