Homilia - 17/09/2023 - XXIV Domingo do Tempo Comum
Fala-se, hoje, muito em qualidade de vida. Todos nós queremos qualidade de vida. Procuramos qualidade de vida em tudo: no comércio, na construção de casas, na saúde, na alimentação, no trabalho. Ninguém aceita as mudanças climáticas. Muitos protestos e manifestações acontecem por causa do aumento do Dióxido de carbono (CO 2). Muda-se até a cidade onde a vida parece ser menos estressante e mais saudável. Deixamos de comer essa ou aquela comida, mesmo sendo saborosa, porque a outra produz mais qualidade de vida e faz bem à saúde. E assim, podemos enumerar dados e fatos que prometem maior qualidade de vida.
É bom ou é ruim quando se procura em tudo qualidade de vida? Depende do que entendemos por qualidade de vida. A qualidade de vida tem duas faces: uma exterior e outra interior. A qualidade de vida exterior é a oferta de coisas materiais; vem de fora para dentro de nós. É aquela que procura preencher a vida pessoal com coisas materiais. Não vamos falar disso em nossa reflexão. A qualidade de vida do interior para fora é aquela que promove a paz dentro da gente, independente de se ter ou não bens materiais.
A qualidade de vida interior, entre outras coisas, depende de nossos relacionamentos. Existem relacionamentos que produzem qualidade de vida e existem relacionamentos que destroem a qualidade de vida. E, nesses casos, podemos ter todo conforto do mundo, toda beleza e riqueza ao nosso redor, mas se os relacionamentos forem conflitantes, se nossos relacionamentos forem de brigas... Então nossa qualidade de vida será de ruim a péssima, porque a formação da qualidade de vida na convivência não acontece de fora para dentro, mas de dentro para fora. Como diz a sabedoria popular: de nada vale morar num palácio se ali se vive em guerra.
O sábio do Livro do Eclesiástico (Eclo 27 33-28.9) diz que rancor e raiva são coisas detestáveis porque destroem a qualidade de vida. Fala do estrago que o rancor e a raiva produzem dentro da gente. Coitada da pessoa que vive com raiva dentro de si. É alguém que vai se corroendo aos poucos e, por causa disso, fica doente não só psicologicamente, mas também corporalmente.
Outra coisa que atrapalha a vida de alguém é a vingança. Viver com raiva, arquitetando vingança, torcendo para que alguém se dê mal tira a paz da pessoa. Quem se deixa envolver pela raiva expulsa de si a paz, porque coloca a pessoa na dinâmica do ódio; o ódio tira a paz e quem vive sem paz perde a qualidade de vida. Pessoas que cultivam vingança e ódio podem ter tudo que a mídia indica como o supra-sumo da qualidade de vida, mas nada valerá se no coração houver ódio, raiva, sede de vingança.
Como curar rancor e vingança?
Diz, outra vez, o sábio do Eclesiástico: “Perdoa ao teu próximo o mal que te fez, e teus pecados serão perdoados quando o pedires.” (Eclo 27,2).
Essa é a condição sem a qual não seremos perdoados por Deus.
Jesus diz que o perdão não tem limites. Pedro pergunta, quantas vezes devo perdoar? O próprio discípulo propõe sete vezes, que já seria o suficiente. Jesus, porém, multiplica ao infinito, e propõe um perdão sem fim, não apenas sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes.
Para ilustrar essa lógica do perdão, Jesus conta a parábola do servo devedor. A sua dívida para com o patrão era impagável. Ele devia dez mil talentos, o que corresponde a algumas toneladas de ouro. Como não poderia pagar nunca, a lógica da vingança era de fato vendê-lo com a mulher e os filhos. Mas, no jeito compassivo de Deus, o servo é perdoado, e sua enorme dívida anistiada.
No entanto, o servo não aprendeu a lição do perdão, e logo voltou à lógica da vingança. Encontrou seu companheiro que lhe devia uma ninharia, cem denários, que corresponde a algumas gramas de ouro, menos de dois salários mínimos, em termos atuais. E manda colocar o companheiro na prisão, porque não podia pagar aquela bagatela. Quer dizer que usou da lógica contrária à que havia sido utilizada para com ele. E então a sua mesma lógica se volta contra ele mesmo.
Jesus nos quer ensinar com esta parábola que devemos perdoar sempre.
Mas, o que Jesus está querendo? Fazer da gente um saco de pancadas? Dar licença para todo mundo abusar da gente?
O perdão é uma das exigências mais difíceis que Jesus nos faz. No entanto, o perdão não conhece meias palavras, dúvidas evasivas, desculpas esfarrapadas.
Jesus mesmo deu um testemunho do perdão, em gestos concretos, do amor, da bondade e da misericórdia do Pai. Na cruz, ele morreu pedindo perdão para os seus assassinos.
Olhando o nosso mundo, o perdão se torna ainda mais complicado. O mundo considera que o perdão é próprio dos fracos, dos que não têm personalidade. E Deus, justamente, pensa o contrário. Deus considera que o perdão é dos fortes, dos que sabem o que é verdadeiramente importante, dos que sabem renunciar ao seu orgulho e sua autossuficiência. Verdade é que a lógica do mundo só conseguiu aumentar ainda mais a violência, a injustiça, a corrupção, a morte. A lógica de Deus tem ajudado a mudar os corações e gerou amor, partilha, diálogo e comunhão.
A parábola de Jesus apresenta um devedor que também precisa de perdão. Jesus está nos lembrando que nenhum de nós tem “ficha limpa” com Deus. O tamanho de nossas dívidas com o Pai não se mede só com o que fazemos. Nossa dívida com Deus é do tamanho da vida que ele nos deu. Jesus não diz isso para nos diminuir. Ele mesmo, que deu por nós a sua própria vida, nos considera muito mais preciosos do que podemos imaginar, mesmo que sejamos bem vaidosos. O que Jesus quer é nos aproximar, em humildade e compaixão daqueles que achamos que estão nos devendo algo. Não somos assim tão diferentes deles. Precisamos também de misericórdia.
Jesus termina sua parábola dizendo que é preciso não só perdoar, mas perdoar de coração. Talvez ele estivesse pensando em certas formas de perdão que são arrogantes ou pensando em gente que perdoa, mas fica sempre lembrando o outro e a todos o erro cometido. É o famoso “perdoo, mas não esqueço”. Quem diz isso não se limita a “não esquecer”, mas fica remoendo o assunto e, no fundo continua amargurado e amargurando o outro. É claro que não podemos tirar da nossa memória nenhuma experiência, boa ou má que seja. É com essas experiências que vamos aprendendo a viver. O que não se deve fazer é lembrar com amargura, como quem continua cobrando o que diz que foi perdoado.
Não é fácil a escola de Jesus. O aprendizado do perdão é fundamental para se ter qualidade de vida, porque pelo perdão não deixamos que lixos de ressentimentos, de mágoas, de raivas e de ódios fiquem guardados dentro de nós, alimentando invejas ou, pior que isso, vinganças. Quem sabe perdoar, ama muito, e quem muito ama tem qualidade de vida.
Fica a lição de hoje: O perdão é a mais profunda manifestação de amor. Quem ama perdoa. Quem ama de verdade não estabelece limites e nem determina números e quantidades. Certo é que nesse querer perdoar nós nos assemelhamos ao nosso Pai que temos no céu.
Frei Gunther Max Walzer